quinta-feira, 18 de março de 2010

"Rodolfo e um Sonho de Natal" de Natacha Bacalhau

São três da tarde, uma tarde fria a desagradável, típicos dias de Inverno que sempre me deixam deprimida. Na verdade, minto, não é o Inverno o culpado de eu me sentir assim, aborrecida, chorosa e irritadiça, sem vontade de fazer nada, à excepção de adormecer e esquecer de todo este dia deprimente.
Há um ano atrás estava em pulgas, ansiosa por abrir as prendas que chamavam por mim debaixo da árvore demasiado enfeitada, mas acontece que este ano o meu “querido” pai fez-me o favor de me estragar um dos dias mais importantes de sempre, quando há cerca de uma semana veio ter comigo com uma daquelas conversas sobre estarmos no meio de uma crise e por isso as prendas não iriam ser muito boas, mas o que importava realmente era estarmos juntos e bem de saúde. Tretas! Que raio de Natal é este se nem uma prenda de jeito vou receber? Mais valia saltar esta época festiva e fingir que nem existe.

O que me vale é que nestes momentos posso sempre contar com a doce companhia do meu grande gato preto, o Rodolfo. Pronto, não gozem, não fui eu que escolhi o nome e asseguro-vos que o seu nariz não é vermelho nem brilhante.
Estou sentada à janela, a observar os flocos de neve que caem de modo entediante. “Este dia não poderia ser mais agradável!”. No preciso momento em que este sarcástico pensamento me invade a mente, eis que sinto uns enormes e amendoados olhos, de um verde profundo, intenso, sábio, pousados em mim.
- Ei Rodolfo, não me olhes assim! Causas-me arrepios. Uau, estás…estás maior! Estás do meu tamanho, ou serei eu que estou do teu?
- Não te assustes. Segue-me apenas, existe algo que necessitas de ver.
- Oh meu Deus! Alguém me explica por que é que ouvi uma voz na minha cabeça e…e por que é que estou coberta de pêlo e tenho uns enormes bigodes que me fazem umas cócegas terríveis?
- Por favor, não grites! Estou farto das tuas “choraminguices”. Segue-me apenas e observa com atenção. Abre a tua mente, o teu coração e deixa-te ir.
Então, o meu gato saltou pela janela para mais um dos seus passeios pela vila, o que seria bastante normal se eu não tivesse de o seguir e ainda por cima em quatro patas. Os primeiros passos foram difíceis, mas depressa me habituei. Uau, que agilidade! Ei, estou a perdê-lo de vista. Para onde é que foi? Ah, está ali. Mas que raio está ele a fazer junto daquele velho vagabundo desdentado, de pêlo baço e sujo? Nem quero acreditar que o meu Rodolfo tem este tipo de companhias. Contudo, atendi ao seu pedido, aproximei-me deles silenciosamente e escutei.
O momento seguinte é praticamente impossível de descrever, pelo menos por meras palavras. De uma forma grosseira e sem sequer lhe fazer justiça, diria que foi mágico! Aquele velho gato guiou-nos numa incrível aventura recheada de dragões, elfos, cavaleiros e princesas e piratas! Ele não é um vagabundo, é um admirável contador de histórias e viajou por todo o mundo! Pelo menos até aos seus donos o terem substituído por um cachorro, ao que parece mais novo e mais bonitinho. Este é o quinto natal que o Capitão passa sozinho na rua e a julgar pela sua idade diria que é o último. No entanto, encontra-se sempre disposto a contar mais uma agradável história aos que o querem ouvir e vêem para além da sua aparência. Hoje sente-se verdadeiramente feliz e eu pergunto-me: como?
Contudo, sem mais demoras, o Rodolfo arrasta-me até ao parapeito de uma janela. Espreito… Bem, isto é que é viver! Que família riquíssima e vejam bem aquele banquete! Esperem aí, que caras tristonhas são aquelas? Têm tudo do bom e do melhor, que mais podem querer? Atendendo mais uma vez ao apelo do meu gato, observei melhor. Numa cestinha ao pé da lareira estava deitado um gatinho, a seu lado as crianças choravam sentindo que nada podiam fazer. Ele estava doente, tinha horas, um dia se tanto…
Oh não, aqui vou eu outra vez. Irra que é rápido! O quê?!? O Rodolfo que nem pense que eu me enfio naquele esgoto. Pronto, está bem com o olhar que me atirou que mais poderia eu fazer? Blhac, que porcaria, que cheiro! Isto é mesmo pegajoso. E lá teria eu continuado a queixar-me senão tivesse escutado um miado de um bebé, parece o choro de um gatinho, não, de mais do que um. Então, olhei e vi. Ali ao cantinho encontrava-se uma mãe gata, bastante atarefada a tentar acalmar os seus cinco gatinhos que choravam desalmadamente cheios de fome. Os donos da Sortuda tinham-na abandonado quando descobriram que estava grávida, pelos vistos não tencionavam ter mais gatos em casa. Agora, tudo o que ela tem para alimentar os filhotes são duas pequeníssimas sardinhas já meio comidas. Que horror, nem posso acreditar que exista tanta miséria nesta noite de natal e eu aborrecida por não receber uma boa pren…
- Maria, acorda querida! Adormeceste aqui à janela e pelo modo como está enroscado em ti, o mesmo se passou com o Rodolfo. Escuta, sei que este poderá não ser o teu melhor Natal, as prendas não são muitas, mas por favor desce e vamos tentar ter um agradável jantar em família, o que interessa é estarmos juntos.
- Claro mãe! Desço imediatamente, mas com uma condição.
- Maria, já te disse que este ano o dinheiro não é mui…
- Não é nada disso mãe! Jantamos, mas a seguir em vez de ficarmos aconchegados em casa, pegamos nas poucas prendas que estão debaixo da árvore, nos restos de comida e talvez num ou outro agasalho que já não nos faça muita falta e vamos pela vila distribuir um pouco de felicidade e de conforto aos que realmente precisam. Nem todos têm a nossa sorte, sabias?
- Mas querida como sabemos onde encontrar essas pessoas?
- Não te preocupes, tenho a certeza de que o Rodolfo nos dará uma grande ajuda. Não olhes assim para mim, sei do que falo! Ah, e não são só as pessoas que precisam de nós, existem também por aí uns gatinhos…
Bem e foi desta maneira, através deste sonho tão profundo, intenso e sábio, tal como o olhar do meu gato, que aprendi o verdadeiro valor do Natal. As prendas de nada servem se o nosso coração não se encontrar recheado de amor, solidariedade, fé e paz.
Contudo, ainda penso…terá sido apenas um sonho? A ronronar, o Rodolfo olha para mim de um modo ternurento. Que maluquice, claro que foi só um sonho! Como poderia ter vivido tal fantasia? Então, eis que reparo num breve e atrevido piscar de olhos.

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